7 de jul. de 2010

Cabeça de Gato

Os cavaleiros seguiam seu caminho sombrio por entre o vale profundo, formado pelas montanhas ameaçadoras que já não deixavam passar o sol do entardecer.
Cansados demais, sujos pelas semanas de batalha que incrustaram manchas de sangue coagulado. Salpicos de vida espalhados por sua indumentária de metal.
Em um dos cavalos, o objeto de sua conquista. Uma caixa de madeira delicadamente adornada, com uma beleza singular que a faz destoar de todo contexto. Uma ilha de tranquilidade em meio ao caos daquelas mentes dedicadas a trucidar os hereges inimigos da santa igreja.
Quando finalmente chegaram ao seu destino, foram recebidos com todas as honras pelo Bispo e por seus padres, bem como pelas mulheres da cidade, as quais foram devidamente convencidas a agradar os nobres guerreiros do Senhor, que deveriam estar necessitados de sua tenra e tranquilizante companhia.
Deixaram a caixa em cima do altar que o Bispo improvisara naquele templo recém construído. Embora fossem fieis aos princípios da fé, sua presença ameaçadora não deixava de ser um certo incômodo para o sagrado superior daquele núcleo cristão. Entretê-los e despachá-los devolta ao campo de batalha parecia ser a segunda maior prioridade ali. A primeira seria esconder aquele objeto.
Fora um único o escolhido por levar a misteriosa entrega a um novo destino. Fiel seguidor da doutrina que aprendera a defender com a mesma veemência daqueles que arrancam cabeças, empalam crianças e estupram mulheres em nome da Obra.
Pelo comando do Santo pontífice, traço algum dos Cavaleiros do Templo e de todos aqueles pelos quais as mãos passaram a caixa de Sanhedrin deveria permanecer pela face da Terra. Tais foram suas ordens que as acomodações dos nobres guerreiros da guarda papal, que com as consortes adormeciam, já não passavam de cinzas e escombros enquanto o cavalo do novo protetor da caixa trotava milhas dali, a caminho da França.
Documento nenhum fora assinado e registros proibidos. A qualquer citação sobre a caixa se pagaria com o fogo da purificação. O jovem padre fora incumbido achando-se digno de tal tarefa apenas pela dedicação que demonstrara para com o Senhor, quando o que realmente lhe dera tamanha honra seria a incapacidade em produzir sons pela boca.
Sem ciência sobre o destino daqueles que viram ou tocaram a valiosa carga, o jovem clérigo segue sozinho, portando, além do objeto, o cantil com a água abençoada pelo Bispo. Seguiria as ordens, sem titubear, de sorver seu conteúdo apenas quando tivesse lacrado a catacumba na qual deveria deixar o objeto. Nenhuma outra água ou líquido poderiam macular seu corpo durante todo dia anterior ao da chegada do fim da peregrinação pois o Bispo queria se assegurar de que a sede do rapaz fosse o suficiente para que não deixasse de esvaziar o veneno insípido que ali depositara.
Durante o descanso, dentro de uma caverna, o padre se aproveitou da solidão e da parca luz de uma fogueira para apreciar aquela caixa com maior apreço.
Toda feita em madeira, com relevos de motivos desconhecidos para o jovem. Seu formato era o de um cubo perfeito, com cerca de dois palmos de largura e de altura em cada um dos lados.
Algo lhe chamou a atenção na recorrência da aparição de uma cabeça de animal. Um gato. Em cinco das seis faces o desenho era o mesmo. Um gato com a bocarra aberta e a figura de um peixe a cair nela.
Estranhamente primitivo, o motivo chamou a atenção do padre sobre o seu significado. O que o fez vasculhar por mais detalhes.
Era desconhecimento do Bispo, mas o jovem compensara seu silêncio, fisiologicamente obrigatório, com meses de leitura e aprendizado pelo simples gosto do saber. Lera sobre muitas culturas e aproveitara-se das ordens do Santo Clemente em confiscar os livros de todas as cidades por onde a Magnum Opus passasse. Sabia em que os hereges acreditavam, seus rituais e costumes. Suas histórias e seus desejos. Ficava triste por não serem capazes de temer ao Deus verdadeiro.
Na face inferior ele encontrou um disco em alto-relevo. Dentro desse disco, vários outros concêntricos, formando anéis contendo caracteres em hebraico por toda sua extensão.
Em um último círculo leu os símbolos que formavam a palavra Sanhedrin,
Intrigou-se ainda mais a mente do rapaz ao perceber que era possível girar, livremente, cada um dos círculos. Eram cinco ao todo, com símbolos hebraicos cuja sequência não formava significado aparente.
Nessa mesma base, encontrou três desenhos gravados. Dispostos de maneira especial, formavam um triângulo invertido em volta do círculo maior.
Do lado direito, um Rei altivo, em seu trono majestoso. No esquerdo, um homem com cabeça de touro, sentado, com a barriga aberta onde no fogo se consumiam figuras de crianças, Em baixo um homem esguio, possuidor de uma cabeça com aspecto de serpente.
Sabia ele do significado de todos esses símbolos e sentiu um calafrio indescritível quando encontrou o correspondentes a Baal, Moloch e Set, espalhados pelos cinco discos e a palavra resultante da união desses nomes poderia ser escrita com exatos cinco caracteres. Beth, Pe, Vav, Mem e Taf.
Ousou alinhar essas letras, sentindo o suor escorrer de sua testa e as mãos trêmulas a cada clique que o mecanismo emitia
Sabia que a palavra formada seria profana em demasia, mas a necessidade de conhecimento subjugou a alma do fiel crente, a ponto de esquecer do que o objeto tratava-se. Esquecer que aquele seria um dos maiores tesouros do Senhor que poderia o homem conhecer e que precisava ser protegido contra a visão e as mãos dos impuros que não amavam a Deus e daqueles que não faziam parte do alto clero.
Sua dúvida cessou quando completou a sentença. Observou a palavra por vários instantes, até agariar a coragem necessária para procurar alguma trava que pudesse liber o segredo daquele invólucro.
Em vão foi a esmiuçada investida por todos o lados daquele misterioso cubo. Sentiu-se tolo e envergonhado por almejar aquele tesouro. Talvez não tivesse a iluminação suficiente, ou sua fé insuficiente para descobrir o que ali se encerrava.
Com o passar dos dias e das semanas, a cada vez que parou para descansar, perdera horas observando os desenhos e os símbolos, mas não se atrevera mais a abrir a caixa.
Quando encontrou a igreja abandonada, perdida em um bosque afastado no interior da França, não hesitou em utilizar das chaves entregues pelo Bispo, as únicas capazes de abrirem as espessas portas daquele templo esquecido por todos. A escuridão fora sanada pelo acender de uma proeminente tocha estacionada na entrada das catacumbas. Desceu cada degrau lutando contra sua curiosidade e seu desejo em descobrir o que dentro do cubo estaria escondido.
Depositou o objeto em uma das centenas de aberturas cavadas numa parede de terra, viu, ao longo da mesma, sinais de que vários outro tesouros ali foram protegidos. Guardados naquele local e tapados com a lama que ali se tinha em profusão.
Enquanto juntava o material necessário para selar o tesouro, teve um único lampejo de raciocínio, e correu na direção do cubo sem hesitar. Tamanha heresia estava prestes a cometer, mas não conseguia parar de ter certeza de que agora ele conseguiria abrir a caixa.
Na sua repentina solução mental, lembrou-se de que os hebraicos utilizavam um método próprio para codificar sua escrita, singular o suficiente para trazer significados secretos a palavras inofensivas.
Pensou pois no Atbash e aplicou-o à palavra de cinco símbolos que ele acreditava ser a chave daquele objeto.
Jamais poderia proferir aquele nome mesmo que as cordas vocais não lhe fossem talhadas no nascimento, mas sabia muito bem como pronunciar o título do ídolo que o Papa Clemente alegou ser cultuado pelos Cavaleiros do Templo.
Baphomet poderia ser escrito de outra maneira, uma maneira mais sutil, delicada. Pensou no significado da transformação dessa palavra profana no seu correspondente Atbash e sentiu-se abençoado por ver ali a verdadeira transmutação da alma.
Converteu ele Beth-Pe-Vav-Men-Taf para Shin-Vav-Pe-Yod-Aleph. Tentou dizer a nova palavra, mesmo sabendo que som algum sairia, assim pode ouvir sua mente cantar a palavra Sophia no momento em que a caixa desmontou-se em suas mãos, deixando apenas um objeto reluzente e de beleza aterrorizante. Os olhos daquela cabeça de ouro, na forma de um gato demoníaco, pareciam sarcásticas ao encarar o jovem padre, que senta-se de assombro na lama da solitária catacumba cristã.
Tremia os dedos pela escultura pois sabia que ali segurava a cabeça de um ídolo profano. Baphomet era o nome e por vários minutos não conseguia pensar em nada mais além da necessidade em realmente tirar aquela imagem dos olhos do mundo.
Juntou as peças do cubo e viu que conseguiria montá-lo novamente. Quando recolocou a cabeça, segurou-a firmemente, observando seus olhos e, contra a luz, percebeu-se tratarem de duas jóias transparentes. Por trás delas, notou algo, mas a surpresa maior lhe ocorreu quando seus dedos, em acidente, destravaram uma cinta por trás das orelhas daquilo que, agora, ele percebera ser algo muito além de simples escultura.
Quando a parte da frente do rosto do gato caiu, o padre percebeu o que realmente estava segurando e o grito mudo não pôde expressar seu terror.
Muitos minutos depois, pode-se ver o padre saindo de dentro da igreja. Seu andar era cambaleante na direção do cavalo. Por tudo que vira ali dentro, percebera a real importância da sua missão e intuitivamente sabia o conteúdo mortal da água do seu cantil e ficou aliviado em saber que pouco tempo teria de vida logo que terminou de beber seu conteúdo.
Sentou-se em uma pedra distante e sentiu os dedos formigarem quando o veneno começou a surtir efeito. A cada instante lembrou-se do ritual de recobrir aquela cabeça com a máscara. Tentava deixar de pensar no rosto mumificado, de boca aberta, sem olhos, com a pele enrugada e enegrecida pela morte. Lembrou-se colocando a cabeça do gato dentro do cubo e da parede espessa de barro com a qual cobriu o conjunto na parede.
Sentiu o coração acelerado, a respiração a lhe faltar. A garganta ficando seca e o equilíbrio lhe sumir do corpo.
Com o rosto na grama, sem conseguir fechar os olhos, executou seus últimos espasmos relembrando dos símbolos que tanto tentara entender. A cabeça de gato a engolir um peixe.
Antes de morrer, tudo o que conseguia pensar era na certeza do que vira e do que ali escondera. Sua última lembrança foi a máscara de ouro revelando uma cabeça humana, com longos cabelos negros, adornada de uma coroa de espinhos.

3 comentários:

  1. Gostei do seu texto. aliás, gostei de todos. Estou te seguindo e farei visitas frenquentes em busca de novidade.
    Você poderia colocar um botão de RSS no seu site, era uma boa.

    Eu escrevo um série infanto-juvenil. Comecei a posta-la dia 15/07 em www.quatroreinos.com.br

    Abraço

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  2. Adorei! Muito bem detalhado e com um final surpreendente! Parabéns!

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  3. ótimo final, e todo o trabalho de narração e descrição... sensacional, mantendo o ritmo a todos os momentos, algo difícil nesse tipo de conto.
    Muito bom, adorei!

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